sábado, junho 17, 2006

Reportagem do Caderno de Cultura do Diário Catarinense
Sábado 17 de junho de 2006

Teatro

Anáguas proibidas


Montagem do grupo catarinense Companhia Aérea presta homenagem a Nelson Rodrigues com uma criativa adaptação de seu único monólogo
POR JADE MARTINS LENHART *

Além das apresentações de A Serpente, em excursão pelo Brasil, e Toda nudez será castigada, em cartaz no Rio de Janeiro, o aniversário de 25 anos da morte de Nelson Rodrigues tem, agora, um novo motivo para ser lembrado. O grupo catarinense Companhia Aérea de Teatro oferece sua contribuição à personagem mais importante da história do teatro brasileiro com a criativa montagem de Valsa Aérea, baseado na peça Valsa n° 6, único monólogo da vasta obra do dramaturgo pernambucano, além de um de seus textos menos conhecidos. Afora a (boa) idéia de iluminar algumas das linhas mais obscuras do polêmico autor, Valsa Aérea ainda realiza a façanha de reproduzir, num espetáculo circunstancialmente amador, uma brilhante combinação de fidelidade ao texto e renovação da montagem.
Com ensaios abertos numa espécie de galpão no Rio Vermelho, em Florianópolis, durante parte de abril e maio, Valsa Aérea estreou oficialmente no Teatro Municipal Marajoara, em Lages, no último dia 24, onde se manteve em cartaz por 10 dias, contando com um público de aproximadamente 600 pessoas. Chama a atenção, antes de tudo, pela ousadia bem acabada, no que difere em absoluto de grande parte das encenações amadoras catarinenses. De Nelson Rodrigues mesmo, só restou o difícil texto, quase na íntegra, espécie de poema dramático que narra, em primeira pessoa, a lenta agonia de Sônia, uma adolescente de 15 anos que desconhece por completo sua identidade, seu passado, suas memórias. Ensaiando todos os dias desde janeiro, Luiza Lorenz, Margô Ferreira e Christiane Martins, estudantes de Artes Cênicas da Udesc, e Pato Malatesta, responsável pela técnica, destacam-se, ainda, por alcançarem, com a montagem de vanguarda, o que poucos grupos iniciantes conseguem: acrescentar ainda mais valor à dramaturgia de Nelson.
Na versão original, condensada ao máximo sobretudo pela escassez de dinheiro que acometia o dramaturgo naquele ano de 1951, o único objeto em cena era um piano, onde Sônia se sentava para executar trechos de sua idéia fixa, a Valsa n° 6, de Chopin. Não havia orçamento para mais nada, tanto que a única atriz em palco era, não por acaso, a irmã de Nelson, Dulce Rodrigues, com quem ele dividiu a parca bilheteria. O texto, moderníssimo na absoluta falta de cronologia e na mistura hermética entre sonho e realidade, mais tarde uma das características que consagrariam o autor, perdeu-se por completo em meio à precariedade da encenação. A apatia da platéia, aliada às sessões únicas justamente às segundas-feiras, reforçou o quadro dramático e transformou Valsa n° 6 num fracasso ululante, assistido por um seleto e inexpressivo público - bem diferente do devaneio de Nelson, que, inspirado pelo sucesso financeiro de As mãos de Eurídice, monólogo de seu amigo Pedro Bloch, achou que ficaria rico com o seu.
Pois o catarinense Valsa Aérea, mais de 50 anos depois, corrige quase todos esses percalços, apresentando, pela primeira vez, uma releitura com toda pompa (cênica) que Valsa n° 6 merece. Em primeiro lugar, as atrizes estão, cada uma na sua vez, presas por cordas, coreografando passos no alto, a alguns metros do chão, como borboletas, ao mesmo tempo em que declamam as falas poéticas de Sônia. O método, "teatro aéreo", é originário do alpinismo, e se vale de cordas amarradas ao tronco para simular vôos que mais parecem releituras dos picadeiros circenses. A efusão técnica, afinal é preciso trocar de roupa e prender as alças a cada nova coreografia, felizmente não compromete, e o que transparece ao público é a imensa naturalidade com que as três atrizes, conspirando a técnica a seu favor, conseguem reunir o circo e o luto, a dor do texto e a leveza dos movimentos, a graça e a seriedade.
Seguindo a mesma trilha, o cenário ignora o piano original para alcançar a sutil mistura entre a atmosfera de sonho do texto e uma estética sombria que várias vezes permeou o teatro rodrigueano, sobretudo em suas peças iniciais, como Vestido de Noiva e A Mulher sem Pecado.
Apresentado como num legítimo teatro de arena, sem a presença da quarta-parede, Valsa Aérea permite que se olhe para o palco de onde se julgar mais conveniente, já que o círculo de pessoas que se posiciona ao redor da peça é forçado a se mexer constantemente. Porém, o pequeno espaço onde apresentou seus ensaios abertos, em Florianópolis, não permite que a encenação alcance toda a sua plenitude.
O que mais chama a atenção, no entanto, é a saia de oito metros e meio (o correto é dois metros e meio-grifo nosso)que une a Sônia que voa lá no alto ao chão, como um gigante. Coberta de tecidos que remetem tanto às anáguas proibidas quanto à doçura dos vestidos infantis, a saia ainda guarda dentro dela as outras duas Sônias, que se debatem como que "por baixo dos panos", sonhando com o momento em que poderão sair dali, brigando entre si, expondo suas dúvidas e dramas, para, por fim, rasgá-la em pedaços e saírem para o mundo.
Esta opção, sem dúvida, remete ao que Nelson Rodrigues defendia em sua autoria como mais especial: o desvelamento do ser humano. Conceber essa representação das duas outras Sônias como sendo apenas vozes que saem de dentro da saia, como as sujeiras que se joga sob o tapete, como as portas que velam os interiores dos quartos, é criar uma fechadura que nos permite espiar o próprio cerne da poética rodrigueana. Uma difícil tarefa, alcançada com sucesso pelas três estudantes catarinenses, que conceberam praticamente sozinhas toda a idéia do espetáculo .
Outro grande achado da montagem é a apresentação de três Sônias em vez de apenas uma, como no original. Além da dificuldade de se decorar um texto imenso, e muitas vezes esvaziado de sentido e repleto de imitações e caracterizações de terceiros, a divisão da personalidade confusa da personagem em três vozes distintas e três corpos diferentes retoma a ambigüidade da menina que não sabe sequer seu próprio nome.
A opção funciona ainda melhor porque as estudantes usaram de uma lógica bastante peculiar, e original, para a divisão das falas. "Encontraram" no próprio texto rodrigueano esboços de um trinômio que defendem como uma Sônia menina, uma Sônia "real" e uma Sônia do desejo. Ou uma Sônia anterior ao choque, momento que a deixou desmemoriada e sem noção da realidade, uma Sônia em choque, a que busca explicação, e uma Sônia de projeção, um tanto enlouquecida, outro tanto sem chão.
É possível perceber, nos 50 minutos de apresentação, que Valsa Aérea é fruto de alguns anos de pesquisa, muitos outros de dedicação à leitura e releitura da obra de Nelson Rodrigues, bem como às negociações para a compra dos direitos autorais. Basta conhecer um pouco a obra do dramaturgo pernambucano para se perceber que as estudantes, auxiliadas também pela professora Maria Brígida de Miranda, da Udesc, e pelo diretor argentino Juan Martin, sabiam o terreno movediço em que estavam pisando. A maior prova disso são os tropeços, significativos, diante da pretensão (alcançada) do espetáculo, pequenos frente à pouca experiência do grupo, em seu primeiro espetáculo "oficial". Grande parte dos deslizes acontece justamente porque elas objetivam o mais difícil: fidelidade absoluta à valsa de Nelson Rodrigues. Embora tenham retirado o ranço carioca, sem acrescentar nenhum catarinense no lugar (ainda bem), o Valsa Aérea poderia se conceder ainda mais autonomia para "limpar" excessos do texto original.
Nelson Rodrigues escreveu com pressa sua peça, e se não a reviu em nenhum momento de sua vida, é porque jamais reviu uma linha sequer do seu teatro. Algumas indicações de interpretação são exageradas, com o intuito de chocar, e não precisam ser levadas ao pé da letra. Da mesma forma, ele coloca uma única personagem a imitar a mãe, o pai, o amante, as amigas e até o médico que a assassinou, "com voz arrastada". O resultado, sobretudo quando não se domina aquele complexo limiar rodrigueano, entre o realismo e o grotesco, entre o melodramático e o trágico, caso das estudantes, é que se resvala para um histriônico que só serve para distanciar o público de um texto que necessita, mais do que qualquer outro, de uma dose extra de boa vontade para se fruir de fato as poéticas palavras do palco.
Se sobra naturalidade com as técnicas do teatro aéreo, também na equilibrada relação entre as acrobacias e a dramaturgia, que não deixa buraco algum, falta uma certa habilidade com o texto, difícil de ser interpretado, ainda mais nos dias de hoje, em que se perde cada vez mais a cultura de teatro. Isso pode ser considerado um defeito, dos grandes. Falta, também, coragem para deixar de lado certas coisas que soam estranhas, deslocadas, quase vícios do autor, como a dança de sapateado no final e uma ou outra imitação do médico, talvez todas. Para isso, porém, elas já possuem o principal, o que poucos grupos contemporâneos que tentam reler Nelson Rodrigues apresentam: talento, pesquisa, inteligência. Estão fazendo uma das melhores releituras nesses tempos de comemoração. Se conseguirem o espaço necessário para a estréia na Ilha, que comporte a estrutura profissional do espetáculo, consagrarão, sem dúvida, o público de Florianópolis. E isso é uma grande qualidade, das maiores.
* Doutoranda em Teoria Literária e pesquisadora do teatro de Nelson Rodrigues

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